Monografia apresentada no final do curso de Terapia Relacional Sistêmica
Apresento neste texto um análise sistêmica de uma família. Você encontra este filme na Netflix
1. INTRODUÇÃO
O tema para esta monografia foi definido após ter visto o filme “Como água para chocolate” que narra a história de 3 gerações de uma família mexicana e seus mitos. O interesse surgiu justamente pela riqueza da história familiar e a possibilidade de analisar sistemicamente as heranças míticas e suas consequências nas 3 gerações apresentadas.
A trama se desenvolve a partir da narração de uma sobrinha-neta da personagem principal – Tita – que vai contando os fatos da família escritos num livro de receitas-diário da tia-avó. O filme apresenta muitas metáforas e simbolismos referentes aos mitos, emoções e aos relacionamentos. Aborda também os temas da sexualidade e dos segredos que circulavam na família e as consequências da rigidez com que eram tratados.
O objetivo da presente monografia é fazer uma leitura teórica e reflexiva da família apresentada no filme.
2. APRESENTAÇÃO DO FILME
Filme – “Como água para chocolate”
História baseada no livro da autora mexicana Laura Esquivel
Diretor – Alfonso Arau
História da família narrada é pela sobrinha-neta de Tita, filha de Esperança
Família de fazendeiros que vive no interior do México no final do século passado
Personagens:
Mãe: Elena
Pai: Juan De La Garza
Filhas: Rosaura, Gertrudes e Tita
Mulato: José
Cozinheira: Nacha
Empregada: Chancha
Pedro Muzquis
Dr. John Brown
3. GENOGRAMA
Informações adicionais:
Nascimentos
- 1895 – Tita
- 1911 – Roberto
- 1912 – Esperança
Casamentos
- 1910 – Pedro e Rosaura
- 1934 – Alex e Esperança
Mortes
- 1895 – Juan
- 1911 – Roberto
- 1912 – Elena
- 1913 – Rosaura
- 1934 – Pedro e Tita
4. LEITURA TEÓRICA
O filme aborda questões de mitos, ritos e conflitos familiares de forma brilhante através de metáforas, simbolismos e analogias para representar sentimentos e sensações. A fotografia do filme explora aspectos que reforçam a essência do tema. Os personagens crescem e criam mais consistência a medida que o filme se desenrola prendendo a atenção e gerando expectativas quanto ao seu desfecho.
A trama da família De La Garza inicia em 1895 num rancho no interior do México. A primeira cena mostra a sobrinha-neta de Tita, a personagem principal do filme, lendo o livro/diário de receitas da tia-avó onde esta registrou os fatos mais importantes de sua vida desde o seu nascimento. A narradora se encontra na quarta geração da família.
A Terapia Relacional Sistêmica faz um levantamento familiar de 3 ou 4 gerações, se possível, com a finalidade de tomar consciência dos mitos familiares e melhor lidar com eles.
O estabelecimento do mito na terceira geração acontece a partir de situações disfuncionais da primeira geração para a segunda e desta para a terceira. Na primeira geração houve uma situação X que desencadeou uma proposta de vida, uma meta a ser cumprida, que preenchia uma necessidade do momento, era funcional, pertinente, adequada e flexível. Esta situação era um ideal na família. O ideal leva ao crescimento e pode ser remodelado, recriado, readaptado nas próximas gerações, permanecendo no nível de ideal da primeira geração. O ideal está relacionado com as estratégias utilizadas pela família para solucionar a situação, são conscientes e flexíveis. Mas, se o ideal enrijece, não é atingido e continua sendo proposto da mesma forma, passa a ser incoerente com o sistema, com o momento e contexto, pois não é mais viável. O ideal disfuncional passa para a geração seguinte, a segunda, como rito. O rito é uma repetição mais ou menos inconsciente e fixa de um comportamento. O rito está relacionado com as regras dentro da família, pois é mais rígido que o ideal: “ele tem que”. Se o rito é questionado, repensado e redirecionado pode se tornar um novo ideal, mas se isto não acontece e ele passa a ser repetido como “papagaio” vai para a geração seguinte, a terceira, como mito. Um mito só se estabelece a partir da terceira geração, torna-se uma ordem dentro do sistema que não pode ser mudada ou questionada, tornando-se uma verdade absoluta. O mito é a lei, é inconsciente e irracional. Esta ordem cria um determinismo mítico que aponta o que deve e o que não pode ser feito. Qualquer tentativa de quebra, ou mesmo a quebra gera a maldição mítica que está ligada sempre com questões de morte, loucura, sexo ou dinheiro. As tres gerações necessárias para estabelecer o mito não necessariamente são tres gerações sequenciais, pois o que demarca a passagem de uma geração para a outra é a disfunção do ideal, que passa a ser rito e que se tornará mito.
1a geração = Ideal ⇒ Estratégias
2a geração = Rito ⇒ Regras
3a geração = Mito ⇒ Lei
A história da família De La Garza é marcada por segredos, por uma rigidez de funcionamento que interferia na comunicação, na expressão da afetividade, na sexualidade e por consequência dificulta movimentos para mudanças. A mãe, Elena, em alguns momentos no início do filme mostra um semblante mais leve, e a partir da morte do seu marido ela tem atitudes que demonstram raiva, ressentimento, amargura que a direcionam para uma postura cada vez mais rígida. A comunicação é unidirecional – de Elena para os outros. Não se pode questionar em hipótese alguma, mesmo que não haja concordância, principalmente questionar algo que “ é assim” durante gerações. A ausência da possibilidade de diálogo aponta para importantes disfunções dentro do sistema familiar. A pouca flexibilidade e a impossibilidade de diálogo colocam os filhos em posição sem saída: ou eles se submetem aos padrões estabelecidos ou eles enlouquecem para sair da situação. Esta rigidez fica clara quando Elena diz para Tita que ela não vai casar para cuidar dela até a morte e Tita questiona dizendo que aquilo não era justo. A mãe responde bruscamente:
“Você não acha nada! Nunca, por gerações, ninguém na família protestou contra este costume e nem minha filha vai protestar!”
Neste costume familiar percebe-se que o mesmo se encontra na geração do mito, pois é inquestionável, precisa ser cumprido, é uma lei dentro da família que passa de uma geração para a outra. O mito envolve muitas coisas: são conteúdos que se entrelaçam, se reorganizam determinando forças que dão origem aos sentidos na família, onde os mitos culturais influenciam a formação dos mitos familiares e estes influenciam diretamente os mitos individuais. Os mitos podem ser construtivos ou nocivos e desorganizadores na medida em que aumentam o estresse familiar, provocam ansiedade, rupturas, condutas depressivas entre outras. Na família De La Garza, o mito da proibição de casamento para cuidar da mãe estava desestruturando a homeostase familiar, gerando conflitos entre as duas irmãs, entre Tita e a mãe e principalmente conflito individual de Tita. Com a impossibilidade de se casar Tita se coloca na posição de “salvadora” da sobrinha quanto a este legado.
O tema do filme gira em torno do amor de Tita e Pedro e a impossibilidade dos dois concretizarem este amor mostrando a força do mito sobre a vida deles. Na primeira tentativa, que seria o casamento na fase de jovens, Elena corta terminantemente confirmando o que já havia dito a Nacha quando está segurava Tita nos braços, ainda bebê, e conversava com ela: “Vou cuidar de você, fazê-la bem bonita e o primeiro que a vir vai querer casar com você!” Elena proíbe Nacha de repetir o que havia falado dizendo que Tita nunca se casaria, pois iria cuidar dela até a sua morte. Tita foi criada por Nacha, a cozinheira do rancho, com muito carinho e afeição. Aprendeu com ela a fina arte da culinária e o poder dos temperos e aromas. Nacha foi para Tita a sua referência afetiva, a sua consoladora, a sua mãe de coração. Em outras cenas após a morte de Nacha, ela aparece dando instruções e orientações para Tita, como se esta buscasse referência para solucionar aquelas situações. Com a morte de Nacha fica determinado que Tita seria a cozinheira do rancho dando continuidade ao mito de Ajuda e Cuidado que cai sobre sua cabeça, pois ela passa a vida cuidando dos outros: da família, dos sobrinhos, das irmãs.
Com a proibição veemente da mãe, Tita se entristece profundamente. A mãe a proíbe de chorar seu infortúnio e a manda organizar com Nacha a festa do noivado e do casamento da irmã Rosaura com Pedro. Nacha a consola e pede que ela vá para o quarto para chorar lá e não em cima da massa do bolo. A história trabalha na cena do casamento com duas metáforas para apresentar os sentimentos de Tita: as toxinas das lágrimas que alteram a massa do bolo e o frio intenso que ela sente a noite e que nada a aquece, nem a manta que tricota para isto.
A dor de Tita foi tão profunda que suas lágrimas contaminaram o bolo e à medida que as pessoas iam comendo sentiam a dor e a melancolia de um amor perdido e frustrado. Estudos físico-químicos já demonstraram que as lágrimas são compostas de sais, água e toxinas do corpo. Verificaram em suas experiências as diferenças das toxinas contidas nas lágrimas relacionando-as com as diferentes emoções expressas. Podemos inferir na leitura simbólica das toxinas de dor e melancolia de Tita que alteraram o bolo, pois as pessoas, ao comê-lo, entraram em sintonia com a sua dor profunda e olharam para sua própria dor ocupando os vários lugares da casa para lembrar e chorar. Todos os convidados foram intoxicados a ponto de passarem mal e vomitar após o jantar. Esta metáfora traduz a impossibilidade de “ engolir emoções” de precisar colocar para fora algo que não é digerível. A psicoterapia corporal corrobora com a leitura do sintoma apresentado no filme, pois o aparelho digestivo tem duas funções básicas: digestão, absorção e metabolismo dos alimentos e também a digestão, absorção e metabolismo das nossas emoções. Emoções que são “indigestas”, como as de Tita nesta situação, causam toxidez no organismo e causam alterações no processo digestivo.
Tita fica tão perturbada que não consegue dormir e não entende o que está acontecendo com ela. A narradora comenta: “Se soubesse naquela época o que era buraco negro seria fácil compreender que tinha um buraco negro no peito que fazia sentir um frio intenso”. A analogia que é feita com o buraco negro, que consome a energia de tudo o que entra nele, é como se o buraco negro tivesse consumido a energia do amor contida no peito de Tita, tal era o frio que ela sentia, que vinha de dentro e nada a aquecia. O frio corporal está relacionado com bloqueios energéticos. A proibição de sua mãe lhe causa um bloqueio no segmento torácico, que é o segmento do amor, da afetividade que irradia para o corpo. O diretor do filme foi feliz no uso destas simbologias – as toxinas nas lágrimas e o frio intenso – pois representou fisicamente a intensidade da dor da personagem.
A relação de Elena com as filhas era de dominação e de rejeição. Rosaura, a primeira filha, acatava mais o que Elena propunha, não questionava e queria perpetuar as leis impostas pela mãe. Rosaura não conseguiu desligar-se de sua mãe, permaneceu leal aos seus ditos e de certa forma reproduziu o modelo de sua mãe no seu casamento e na relação com seus filhos: distante, fria, sem afetividade. Gerturdis, a segunda filha, era fruto de uma relação extraconjugal, com José, o mulato, que foi o seu amor secreto. Gerturdis representava a sua impossibilidade de amar e a sua vergonha diante da sociedade da época, pois seu marido morre ao saber que a menina não era sua filha. Gerturdis não aceita muito as ordens da mãe, sente sua rejeição por ela e foge de casa para viver sua vida e sua sexualidade sem proibições. Após este episódio, Elena destrói os documentos da filha e queima suas fotos, proibindo que se falasse dela em casa. Com isto Elena declara a morte da filha para ela. Gertrudis com esta fuga, rompe com as regras impostas pela mãe e faz o que a mãe gostaria de ter feito com o seu amor, o mulato, e não conseguiu. Tita, a última filha, perde o pai assim que nasce e Elena a entrega para que Nacha cuide dela, pois seu leite havia secado. A morte de seu marido marca o estabelecimento da sua amargura com a vida e com as suas impossibilidade: amar livremente, gozar de sua sexualidade e receber amor. Tita sente a sua rejeição e ódio contra ela. Procura questionar, sair fora das suas leis, mas a cada tentativa, algo acontece. O mito que recai sobre sua cabeça é mais forte que ela. Tita tem consciência da sua impossibilidade e isto faz com que se inicie “uma ventilação”, uma circulação que permitirá a liberação da geração seguinte.
A família deve permitir que os seus membros se diferenciem como indivíduos, cada um deve ganhar espaço para se desenvolver independentemente e trilhar seu próprio caminho. Em famílias disfuncionais e rígidas como a família De La Garza, não existe espaço para o crescimento e individuação: Rosaura seguiu as ordens da mãe e queria dar continuidade a elas, Gertrudis precisou de um rompimento radical para buscar o seu caminho e Tita queria sair, mas a força do mito sobre sua cabeça era mais forte que ela.
Rosaura tem seu primeiro filho, Roberto, e a sua ama de leite morre. Tita assume a amamentação de Roberto e o faz escondido. Apenas Pedro sabe. Tita o assume como seu próprio filho e cuida dele com muito carinho. Elena ao perceber seu cuidado envia o casal para outra cidade e o menino não se acostuma com o alimento e morre. Com este fato, Tita afronta a mãe, a acusa de ser culpada pela morte do menino, que está cansada de lhe obedecer e entra em crise profunda de choro. Como a expressão dos sentimentos era proibida por Elena, Tita foi considerada louca. Imediatamente Elena a envia para a casa do Dr. Brown pois ali ela não tinha espaço para “loucos”. Tita passa então um período de profunda depressão que era fruto da disfunção relacional na família. Dr Brown a acolhe em sua casa e cuida dela com muito afeto e respeito pela sua dor. Neste período, Tita se reorganiza internamente com a ajuda do Dr Brown. Ele narra a ela uma história que sua avó lhe contava sobre a luz interior e a metáfora da luz dos fósforos. Tita escuta atentamente e pensa em sua vida e no poder do amor como elemento de transformação. Esta metáfora mostra a importância do afeto e amor na vida das pessoas e como a sua falta leva para a profunda depressão. Tita, ao sair da depressão, aceita a proposta de casamento que Dr. Brown lhe faz, dizendo que nunca mais iria voltar ao rancho. Outra vez, na sua tentativa de sair da lei que lhe fora imposta, fatos acontecem que a impedem de prosseguir com o seu livramento. O rancho sofre um assalto e sua mãe morre ao lutar com os assaltantes. Tita volta ao rancho e prepara o enterro. Neste momento encontra a chave que guarda o segredo de sua mãe. Ao abrir a caixa da mãe, encontra a resposta para a amargura de sua mãe: as cartas que explicavam a morte do seu pai e a foto de um amor frustrado como o dela. Logo após a morte de Elena, Rosaura tem uma filha prematura, que recebe o nome de Esperança, por sugestão de Tita. Como Rosaura ficou debilitada com o parto, Tita se encarrega de cuidar da menina.
Tita dá continuidade aos seus planos de casar com Dr Brown, mas tem o seu primeiro encontro íntimo com Pedro. Nesta noite, um fenômeno da natureza marca a sua tentativa de quebra do mito: houve tempestade, relâmpagos e fogos! O mesmo fenômeno acontece na última cena, 22 anos depois, quando Pedro e Tita tem relações sexuais após terem resolvido se casar.
Tita tem uma gravidez psicológica e neste período se defronta com o fantasma de sua mãe a desqualificando por seus atos. Tita, sabendo do acontecido com Elena, a confronta colocando seus sentimentos e sua opinião. Desta forma rompe definitivamente com as suas imposições. Com o desaparecimento do fantasma, este, não podendo mais atingir Tita, atinge Pedro que dança em volta da fogueira na festa de despedida de Gertrudis. Tita cuida dele sob a orientação do fantasma de Nacha. A verdade entre ela e Pedro vem à tona e Rosaura vem tomar satisfação. As duas irmãs discutem abertamente sobre a situação. O segredo já não é mais segredo… esta discussão das duas é outro momento importante para a ventilação do mito, pois envolve amor de Pedro e Tita, o cuidado de Esperança por Tita e a quebra do mito de que Esperança cuidaria da mãe até a sua morte. Tita se revolta e diz que ela não vai arruinar a vida da menina por causa de uma tradição estúpida, e promete à Esperança:
“Não se preocupe pequenina, a tradição morrerá em mim, ninguém a maltratará”.
A expressão mexicana ”como água para chocolate” refere a um estado de pré-ebulição, quase explodindo, que seria o semelhante ao nosso ”em ponto de bala” e retrata o sentimento de Tita em relação ao mito familiar.
A doença de Rosaura se agrava e ela vem a falecer tres dias após esta briga. O filme mostra que ela tinha disfunções gástricas severas desde a gravidez da menina. Como já foi dito antes sobre as funções gástricas, podemos concluir que Rosaura não “ engolia” o amor de seu marido pela a irmã, ficando isto claro na sua discussão com Tita.
Nas últimas cenas do filme, no casamento de Esperança com o filho do Dr Brown, 22 anos depois, Tita e Pedro dançam e relembram seus desejos e sonhos de casamento. Ele a pede novamente em casamento e ela concorda. Agora estão livres para ir em frente, não tem mais nada que os impeça, mas Tita ainda tem o mito sobre sua cabeça. Ao terem sua primeira relação sexual livres, sem a preocupação de se esconder, Pedro tem um enfarte e morre em seus braços. Tita lembra das palavras do Dr. Brown sobre a luz interna e a chama do amor. Engole os fósforos e o quarto pega fogo que se alastra pela casa queimando os dois juntos na cama. A única coisa que permanece intacta é o livro de receitas de Tita onde ela conta a história do seu amor junto com suas receitas.
O filme mostra o quanto é difícil romper um mito que vem estabelecido através de gerações. Nesta tragédia amorosa, foi necessário acontecer a loucura de Tita para romper com sua mãe, a morte der Roberto pela impossibilidade de Rosaura lhe dar afeto e comida, de Elena no momento que Tita resolve se casar com o médico, a morte de Rosaura que não consegue conviver com as verdades, e a morte dos dois que não tinham permissão mitológica para concretizar seu sonhos e desejos.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KROM,M., Família e Mitos. Prevenção e Terapia: resgatando histórias.,
Summus Editorial, São Paulo, 2000.
PRADO, L.C., (org), Famílias e Terapeutas construindo caminhos, Artes
Médicas,
ROSSET, S.M. Compreensão Relacional Sistêmica dos Mitos Familiares,
Texto – 1990